É TEMPO DE GRANDES ESPERANÇAS!


Assim, seguia eu, com o barulho das rodas do trem nos trilhos, o silêncio britânico nos transportes públicos e minha vontade de sentir “a alma de mais um lugar.” Mergulhei na leitura de uma tese de doutorado que começa assim: “Em nove de junho de 1870, no dia em que Charles Dickens morreu, aos 58 anos, enquanto a rainha lamentava no palácio de Windsor, alguém notificava a voz de uma criança, vendedora frutas, noutra cidade: _ Se Charles Dickens morreu, então o Papai Noel também irá morrer.”  

 Talvez na mente infantil isso não fosse um exagero, pois o escritor abordou a celebração natalina em duas de suas obras: a urbana após a Revolução Industrial em Christmas Carol (adaptado ao cinema), ao passo que em The Picwick Papers, seu primeiro romance,  o Natal era associado a comunidades rurais e feudais.

Enfim, Portsmouth Harbour. Que atmosfera! O azul do céu não se misturava com o tom do mar que, além da imensidão do turquesa, recebia reflexos prateados do sol, enquanto um enorme navio ancorava para levar os passageiros em destino à Isle of White.  Um destaque ao estaleiro histórico:  por ser uma região portuária, Portsmouth sofreu bastante em tempos de guerras, e o “Portsmouth Historick Dockyard” (cenário do filme “Os Miseráveis”) permanece lá, eternizando essa história.
 
 Foi também ali um dos lugares que o pai de Dickens trabalhou, pela Marinha Britânica. E, enquanto eu capturava a parte velha da cidade em direção à “Old Commercial Road”, meditava a respeito da biografia do grande romancista, que está enterrado no lugar mais honroso que um escritor poderia estar, Poet´s Corner, dentro da Abadia de Westminster.

 Charles Dickens, considerado o escritor mais popular da Era Vitoriana,  era de família de classe média bem baixa, viveu a pobreza de perto, presenciou a desigualdade social, a prisão do pai e chegou a trabalhar numa fábrica de graxa com apenas 12 anos. Coincidência ou não, esse episódio ou temática do trabalho infantil irá aparecer, de forma disfarçada, em suas obras, como a realidade urbana da Inglaterra, considerada a “Oficina do mundo”,  na época.

 O escritor de Portsmouth enriqueceu com seus romances, que eram lançados em fascículos e jornais, naquele tempo. Antes, porém, trabalhou num escritório de advogados, aprendeu o ofício e começou a fazer pequenos relatórios nas assembleias, reuniões políticas e da nobreza. Era um homem de relacionamentos, de network, e isso o ajudou a conquistar espaço. Lança suas obras em fascículos e preferia que os leitores tivessem contato constante com sua escrita. A veia jornalística nunca o abandonou, embora ele sempre trouxesse tudo para os romances em forma de ficção.

Ele tinha uma interação com as pessoas, ouvia o que diziam, enviava sua “equipe” aos eventos, para anotar sobre o que conversavam, o tom de voz, os detalhes, e trazia isso para seus livros, uma espécie de matéria viva. O fato de ele ser já dono de jornal e de empreendimentos, facilitava a sua rede. As pessoas diziam, como aconteceu com Machado de Assis, no Rio, “nós lemos ou ouvimos a obra do Dickens para saber o que acontece na sociedade.”  Eis um grande poder da literatura, ela conta a História por meio das histórias! Machado de Assis,  três décadas mais novo do que Dickens, foi o tradutor de parte do romance Oliver Twist no Brasil, e alguns críticos e ensaístas literários encontram um paralelo ou proximidade estilística entre o conto machadiano, “Miss Dollar”, e o romance citado dickensiano.

Ele vendia muito, e esse foi um dos motivos pelos quais sua obra só foi aceita e valorizada pela Academia muito tempo depois. Além do mais, mostrava a realidade do capitalismo da época. Porém, foi não só lida e aceita, como chegou a ter influência linguística no país, pois, tal qual Guimarães Rosa, Dickens inventava palavras e elas se popularizavam.

 Vale retomar um de seus últimos romances, adaptado para o cinema: Grande Esperanças. Num tom melancólico, Pip, o protagonista, faz reflexões a respeito de valores, amizades. Mas, de que grandes esperanças falava Dickens? Creio que cada leitor tem seu ponto de vista. Porém, o mais nobre é ver o quanto sua obra foi alcançada por pessoas de diferentes classes e idades.

O poder do legado eternizado! Os livros abençoam gerações futuras, e aqui estou eu, fascinada por um romance de 1861, mais contemporâneo do que nunca, pois aborda a desigualdade social. -Meu querido Charles Dickens, a sua obra se imortalizou.

 E, hoje, em tempos tão difíceis, posso dizer ao mundo, por meio dela: apesar tudo, É TEMPO DE GRANDES ESPERANÇAS, pois, como você mesmo disse:     "Ninguém pode achar que falhou a sua missão neste mundo, se aliviou o fardo de outra

Por Colunista Sueli Lopes

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