Jorge Luís Borges declarou: “Há um tópico de que gosto: o de um manuscrito que está continuamente se desenrolando, sem desenrolar-se jamais, que o abade desenrola sem fim, sem jamais atingir o fim do manuscrito.”
O projeto editorial da obra O Poder da Voz Feminina na Literatura teve, como ponto de partida, o desenrolar contínuo de
um manuscrito, em que as escritoras homenageadas se encontram em ordem cronológica, não em ordem alfabética, como na maioria das coletâneas.
Dessa forma, é como se cada coautora desenrolasse parte do manuscrito a partir de uma época, até alcançar as contemporâneas.
Umberto Eco, em seu romance O Nome da Rosa, oferece uma perspectiva fascinante sobre os segredos guardados como nos pergaminhos antigos.
Na narrativa, o personagem principal investiga a morte do monge Adelmo de Otranto, bem como os conhecimentos e mistérios que estão contidos nos manuscritos preservados na abadia.
Uma passagem memorável, agora do romance O Mestre e a Margarida, de Mikhail Bulgákov, obra que demorou dez anos para ser terminada, é: “Os manuscritos
não queimam”. Essa frase ressalta a resistência do conhecimento escrito, independentemente dos esforços para destruí-lo.
Essa afirmação ressoa com a ideia de que os manuscritos têm um poder intrínseco, uma presença duradoura que transcende o tempo e as circunstâncias. Tal ideia pode ser ampliada para incluir as vozes femininas na literatura, que muitas vezes são preservadas e transmitidas através dos séculos por meio de textos escritos à mão.
De igual modo, mulheres podem ser destacadas entre as analogias que comparam livros a árvores. Embora essas citações não façam uma comparação direta entre mulheres e árvores, elas aludem à relação entre mulheres e palavras, bem como à importância da expressão feminina na literatura e na cultura. Aqui estão algumas delas:
Sylvia Plath, em A Redoma de Vidro, disse: “Eu sou, eu sou, eu sou”. Uma afirmação clara, que reforça a ideia de que as mulheres sempre souberam que têm uma identidade própria, uma voz única e uma presença poderosa, assim como as árvores têm suas próprias características distintas.
Virginia Woolf, em seu ensaio Um Teto Todo Seu, escreveu“Tranquemsuasbibliotecas, sequiserem; masnão há portão, nem fechadura, nem ferrolho que vocês possam colocar sobre a liberdade da minha mente”. Virginia, com essas palavras, destaca a força e a liberdade da expressão feminina, semelhante à imagem de uma árvore que cresce livremente.
Maya Angelou se pronunciou: “Aprendi que as pessoas esquecerão o que você disse, esquecerão o que você fez, mas nunca esquecerão como você as fez sentir”. Eis uma inesquecível citação, que enfatiza o poder de conexão das palavras e da comunicação, assim como as raízes profundas de uma árvore.
Por fim, impossível esquecer Larrosa que contribui para validar as metáforas aqui utilizadas: “Todas as leituras possíveis são múltiplas e infinitas; o mundo está para ser lido de outras formas; nós mesmos ainda não fomos lidos”.
Embora esses recortes não façam uma comparação direta entre mulheres e árvores, eles capturam a essência da relação entre mulheres e palavras, bem como a força e a vitalidade da expressão feminina na literatura e na sociedade.
Nesse contexto, vale destacar a obra Eu Sei Por Que O Pássaro Canta na Gaiola (1969), uma autobiografia de estreia de Maya Angelou, publicada em 1969. O livro é uma narrativa poderosa que conta a história de Angelou, desde sua infância no sul segregado dos Estados Unidos, até sua transição para a vida adulta.
A obra não é apenas uma celebração da resiliência, da coragem e da força interior, mas também a abordagem de questões profundas de racismo, trauma, abuso e superação. O título é inspirado em um poema de Paul Laurence Dunbar, que fala sobre a liberdade e a luta pela igualdade.
Em uma analogia com a conquista da mulher em relação ao direito de escrever e publicar, Eu Sei Por Que O Pássaro Canta na Gaiola é um testemunho da luta de Angelou para encontrar sua voz e sua expressão em um mundo que muitas vezes tentava silenciá-la. Assim como a protagonista do livro, muitas mulheres enfrentaram desafios para serem ouvidas e respeitadas como escritoras.
No livro, Angelou descreve como ela aprendeu a usar a escrita como uma forma de se expressar e se libertar das limitações impostas pela sociedade. Ela usa suas palavras como asas para voar além das barreiras do racismo, do sexismo e da pobreza.
Por meio da escrita, ela encontra uma maneira de se afirmar e contar sua própria história, desafiando estereótipos e reivindicando sua identidade.
A publicação de Eu Sei Por Que O Pássaro Canta na Gaiola foi um marco importante na história da literatura americana e também na conquista das mulheres como escritoras.
Angelou abriu caminho para que outras mulheres, especialmente mulheres negras, contassem suas próprias histórias e visões de mundo. Sua coragem e sua voz inspiraram gerações de mulheres a se levantarem e a acreditarem no poder de sua própria narrativa.
Assim como a protagonista do livro encontra força e liberdade através da escrita, as mulheres encontraram e continuam a encontrar, na literatura, uma ferramenta poderosa para expressar suas experiências, desafiar a opressão e reivindicar seu lugar no mundo da escrita e da publicação.
Eu Sei Por Que O Pássaro Canta na Gaiola é mais do que uma simples autobiografia; é um manifesto de posicionamento feminino e um lembrete do poder transformador da palavra escrita.
Ouso imaginar que o sonho de Maya Angelou possa ter sido: quem sabe um dia, os pássaros que cantam na gaiola encontrarão suas asas libertas e seus trinados ecoarão além das fronteiras da opressão.
Seus cantos, impregnados de esperança e liberdade, cruzarão vastos horizontes, alcançando todas as árvores do mundo? Cada melodia será um hino à igualdade, uma sinfonia de justiça que inundará a humanidade, com seu poder transformador.
Os pássaros, antes aprisionados, se tornarão mensageiros da emancipação, voando alto e livremente, levando consigo o sonho de um mundo onde todos possam viver com asas desimpedidas pelo peso da injustiça.
Talvez hoje, sob o céu aberto, esses pássaros cantem. Seus trinados ressoam entre as Magnólias descritas no belo poema de Sylvia Plath, símbolos de beleza e renascimento.
Como a mulher que se liberta das correntes invisíveis, esses pássaros celebram a liberdade da alma feminina. Suas melodias são um hino à emancipação, uma ode à coragem de ser quem se é, além das expectativas e dos padrões impostos.
Assim como as Magnólias de Plath, as mulheres florescem. Elas encontram força em suas próprias vozes, em suas próprias histórias. Elas se erguem como as árvores altaneiras, enraizadas na terra, mas alcançando os céus. E à medida que cantam, seus trinados ressoam como um chamado à igualdade, à justiça e à liberdade.
Queessasvozesperduremporentreosséculos, unindo- se em um coro universal de resiliência e de esperança. Que possamos, como os pássaros da gaiola e as magnólias do poema, encontrar, em nossas próprias histórias, a força para voar além das limitações, rumo a um horizonte de possibilidades infinitas.
Nos relatos de Maya Angelou e Sylvia Plath, encontramos páginas marcadas por lutas, dores e conquistas da alma feminina.
Os pássaros da gaiola de Angelou, talvez representem a sensação de aprisionamento, de se sentir confinado em um mundo de expectativas e limitações.
Enquanto isso, a Redoma de Vidro de Plath nos leva a mergulhar nas angústias e na fragilidade de uma mente aprisionada por normas e padrões opressivos.
Hoje, olhando para trás, podemos ver o caminho percorrido por mulheres que se libertaram dessas gaiolas e redomas. Elas são como os pássaros que finalmente encontram a chave para abrir as grades e voar para a liberdade. Suas histórias são uma mistura de dor e triunfo, de luta e resiliência.
Enquanto os pássaros alçam voo, as mulheres também decolam em busca de seus próprios destinos. Elas encaram os desafios, enfrentam o medo e superam as expectativas. E, assim como as Magnólias de Plath, elas florescem mesmo em meio às adversidades, encontrando beleza e força em sua própria jornada.
No poema Magnólias de Sylvia Plath, uma das passagens mais marcantes é: “Eu fui arrastado por um rosto nu, as massas de raízes, as narinas, as mandíbulas.”
Note como o eu lírico parace evocar uma sensação de ser puxado para dentro de um mundo de raízes, um lugar profundo e misterioso, em que as magnólias florescem e exalam sua fragrância.
Plath descreve a experiência de ser envolvida pela natureza de forma profunda, como se estivesse sendo sugada para dentro da terra, para um lugar de renascimento e transformação.
Essas histórias, citações e poesias, bem como todas as que compõem as páginas deste livro, nos lembram da importância de reconhecer e valorizar a voz das mulheres, de permitir que elas se expressem livremente, sem medo de julgamento ou repressão.
Pois, ao fazer isso, não estamos apenas libertando as mulheres, mas também liberando a humanidade para um futuro mais justo e igualitário. Viva o voo dos pássaros!
Sueli Lopes- Autora, escritora, professora, colunista internacional, Drª h. c. em Literatura, Chanceler da Paz pela Febacla. Membra efetiva da Academina Internacional de Literatura Brasileira.