Uma das melhores formas de prever o futuro, é escrevendo-o, e isso significa deixar um legado, reescrever sua história e criar uma nova, a partir do agora. Afinal, na escrita, o poder está, literalmente, em nossas mãos: o de visualizar nossos pensamentos e organizá-los, de expressar nosso ponto de vista e nossas emoções, de trazer para fora nossa sabedoria intuitiva, de dar voz à nossa essência e ao nosso olhar. A escrita tem ainda o poder de nos levar a descobrir até novos aspectos sobre nós mesmos.
O ato de escrever de forma espontânea, além de ampliar nossa consciência e permitir novas conexões e ideias, abre portais da nossa memória, inclusive a ancestral. Isso mesmo, assim como o outono revela a chegada do inverno e o fim do verão, a escrita revela histórias escondidas dentro de nós, uma vez que também acessamos, junto à criatividade, as informações do inconsciente. A respeito disso, expressa Stephen Koch (2018):
Tão logo a sua mente inconsciente comece de fato a se concentrar num determinado projeto, é provável que seu poder de observação se fixe nele e pareça subitamente transformar-se. As coisas que se encaixam em seu projeto parecem surgir de modo espontâneo onde quer que você olhe. O projeto se torna uma espécie de lente que dota a mente da misteriosa habilidade de organizar o acaso; a concentração interior faz o que é relevante saltar à sua frente vindo de todos os lados. De repente o mundo parece transbordante de tudo o que você precisa.
Não é por acaso que muitos afirmam, e eu concordo, a escrita é uma maneira de transbordarmos. Quanto mais nos envolvemos com ela, mais ela se revela a nós. Quanto mais nos dedicamos a um projeto específico, mais fontes sobre ele encontraremos. Quando estou escrevendo, afirma Edmund White, em entrevista a Jordan Elgrably, 1988:
Meu cérebro começa a armazenar informações de um modo diferente do habitual. Estou atrás das coisas de que preciso e vou capturá-las em qualquer lugar. Há uma magia que todo escritor conhece: parece que o mundo lhe dá exatamente as informações de que você precisa, no momento em que precisa.
Porém, se você não as escrever, a chance de elas se perderem no meio dos milhares de pensamentos de cada minuto, é grande. Sobre o mesmo enfoque, há um relato a respeito do povo judeu, na Bíblia, no qual um profeta chamado Habacuque questionava a Deus sobre a situação difícil em que o povo vivia. Ele teve uma visão, mas não entendeu muito bem. A resposta de Deus foi: Escreve a visão, e torne-a bem legível!
Nesse sentido, a escrita é também uma forma de tornar as ideias mais claras, mais legíveis. Na verdade, a maioria dos escritores de ficção, por exemplo, não conhecem suas histórias até começarem a contá-las. O máximo que eles têm é um insight, um germe, uma semente, um lampejo. Assim sendo, não seria um exagero dizer que a escrita tem um poder revelador. Afinal:
As histórias só se revelam, até mesmo para quem as conta, ao serem contadas. Como é possível contar uma história antes de conhecê-la? Basta deixar que ela se conte por seu intermédio. Portanto, ao contá-la, deixe que ela dê as indicações quanto ao rumo seguir. No começo é preciso sentir o caminho, deixando-se guiar. (KOCH, 2018).
Portanto, seja qual for o seu projeto de escrita: um blog, um livro, conteúdos para redes sociais, leve-o a sério. Envolva-se com a criação, tendo-a como missão, como forma de trazer à existência algo que ainda não existe; mesmo que tenha imitações, modelos, referências, será algo novo, com o seu olhar. As histórias estão em todo lugar, basta que tenhamos a sensibilidade de enxergá-las, basta que deixemos que elas se revelem a nós. Stephen Koch (2018), ao dar aulas para escritores na Universidade de Columbia, relata o desespero de seus alunos, por não entenderem esse processo:
As pessoas muito verbais têm dificuldade para tolerar que lhes faltem palavras para descrever algo que as empolga, e as que chegavam ao meu escritório eram, na maioria, pessoas desse tipo, que se viam mudas diante uma história que não convertiam em palavras. Ainda. Elas não sabiam que a narrativa, qualquer uma, começa com essa ausência de palavras.
Isso mesmo. A fase do silêncio, de assimilar a ideia, a história, existe e precisa ser respeitada. A fase da ausência de palavras, com certeza, revela as imagens, os sentimentos, os cheiros, os lugares, as memórias. Alias, você sabia que as histórias são pré-existentes? Pois bem. Em algum lugar, de alguma forma, mesmo na fase da ausência de palavras, já temos muito contato com elas. Não nos esqueçamos de que estamos desenterrando um fóssil. A raiz latina da palavra inventar significa “descobrir”, e sobre isso Stephen Koch pontua:
[...] Os escritores não inventam histórias. Encontram-nas. Revelam-nas. Descobrem-nas. Às vezes na vida real. Às vezes nas profundezas da imaginação. Nos dois casos, inventam histórias ao encontrá-las e, por outro lado, encontram essas mesmas histórias ao inventá-las. O que vem primeiro? Essa é a parte misteriosa. A inter-relação entre inventar e desenterrar. Sua imaginação nem sempre perceberá a diferença.
Sinceramente acredito que a escrita é uma forma de encontramos o outro, bem como de chegarmos à materialização de nossas ideias.
Stephen Koch, em Oficina para Escritores, não poderia ter uma citação mais sugestiva, no sentido de nos incentivar a acreditar em nossos sonhos e a usar a escrita como forma de materializá-los. À medida em que vamos organizando nossas ideias para escrevê-las, vamos também criando as imagens dessa organização. Essas imagens têm o poder de gerar em nós sentimentos de realização daquilo que ainda não existe como se já existisse. Além do mais, um projeto pronto, uma ideia organizada no papel, detalhada, tem mais chance de obter uma oportunidade. Vejamos a citação:
O poder de imaginar o não visto a partir do visto, de descobrir a implicação das coisas, de avaliar o todo a partir de um aspecto significativo. [...] Essa constelação de dons pode ser considerada a própria definição da experiência, e ela acontece na cidade e no campo, em pessoas dos mais diversos graus de instrução. (KOCH, 2018).
Que nunca percamos o poder de imaginar, de trazer à existência aquilo que estiver ao nosso alcance. Que jamais deixemos de acreditar nessa “constelação de dons e talentos” que habita em nós, nem deixemos de ver o quanto nossa experiência, nossa história de vida têm valor.
Obtenha a coragem, o hábito de se “desnudar” por meio da escrita, lembrando que ela interage, aproxima, conecta, e que, por meio dela, vamos além da fala e dos pensamentos, somos donos do tempo e do espaço, nos tornando capazes de ligar presente, passado e futuro.
Lembre-se sempre do que expressou Ana cláudia Quintana Arantes:
[...] Como a água, a escrita pode se adaptar a qualquer movimento...
Como o ar, a escrita pode permear todas as emoções humanas...
Como o fogo, a escrita transforma.
Como a terra, a escrita é fertil.
Consideremos ainda o que afirmou Ana Holanda (2018):
O convívio com as palavras, entre leituras e processos criativos, pode nos ensinar muito sobre nós mesmos, sobre as vivências que compartilhamos.
Nesse sentido, escrever é, também, conviver. É parar para observar o outro, enxergar a vida que há no outro. É essa vida que dá vigor às criações artísticas.
Se analisarmos bem, e ligarmos vida-palavra-água-escrita, encontraremos um belo caminho de materialização, de organização de ideias, de algo novo sendo trazido à existência. Basta respirar bem profundo e prestar bastante atenção, ao expirar, no barulho forte de água, de cachoeira, que sai de dentro de nós. Com efeito, somos gerados em água, na plascenta de nossa mãe, nosso corpo é formado com 70% de água.
Na verdade, creio eu, as águas que compõem nosso corpo vêm direto do Rio de Vida do Criador. E uma magnífica forma de transbordar essa vida é por meio da escrita. Eu diria que em nossa essência estão os embriões do Criador, germinando no campo de todas as possibilidades e da criatividade infinita. E, por que não ir além, e crer que em qualquer estação, em qualquer passagem, transição, mudança, travessia podemos fazer a diferença? Quantos “mergulhos profundos”, travessias literárias, experiências de nossa jornada precisam ser contemplados, vividos com intensidade. Bendita palavra que nos dá a oportunidade de eternizá-los e compartilhá-los.
Por isso, é sempre bom anotarmos nossas ideias. Um dia, teremos outros “insights” que se conectarão com elas. Algo novo pode surgir. Não desperdice suas imaginações e sementes. Guarde todas. Anote todas. Elas são tesouros. Você sabia que elas podem nos ajudar a expressar sentimentos e organizar a “bagunça interna”?
Se analisarmos bem, conforme relatou Gabriel Gutierrez, perceberemos que:
Desde os primórdios o ser humano busca formas de materializar seus sentimentos. Os egípcios, por exemplo, criaram mais de 600 hieróglifos com diferentes objetivos, contar histórias era um deles. Da mesma forma, há relatos de círculos ritualísticos feitos por tribos indígenas, nos quais cada integrante cantava seu nome, gerando um som harmônico.
E os homens das cavernas? Não eram eles que faziam pinturas rupestres nas paredes delas por acreditarem que tais desenhos os ajudavam na caça? Os alquimistas medievais foram mais longe ainda, mesmo que metafisicamente, tentaram construir a famosa pedra filosofal, acreditando conter algo que não pode ser perdido ou dissolvido, algo eterno parecido com a experiência mística de Deus, algo que pudesse armazenar a essência de um indivíduo, inclusive foram encontrados manuscritos de Isaac Newton (que foi um alquimista) detalhando elementos para construção da pedra.
Ele ainda relata que “para o neurobiólogo chileno Humberto Maturana, somos seres ‘linguajantes’. Segundo ele, existe uma característica natural do ser humano em expressar e materializar seus sentimentos. O tempo passou e até hoje continuamos a busca, a fim de encontrar formas diferentes de expressar o que criamos em nossas mentes. De alguma forma, estamos sempre criando algo internamente meio nebuloso que necessita alcançar a luz para ser visualizado.” Concordo com Maturana. Somos seres linguajantes mesmo. E como somos! Por isso, deixe a luz brilhar dentro de você. Deixe sua mensagem vir para fora, se materializar. Isso é libertador.
Inclusive, há vários estudos que apontam o quanto sofremos com vários problemas de desorientação quando não organizamos nossos pensamentos. E é justamente na escrita, na composição das muitas formas de arte que conseguimos organizá-los e entendê-los.
Entre os estudos, vale ressaltar o do filósofo Schopenhauer, que expressa: “A essência da arte reside no fato de que uma mesma situação se aplica a milhares de pessoas.” Pode ser que sua história venha a ser respeitada e compartilhada por muito mais pessoas do que você imagina.
Que tenhamos sempre a coragem de encontrar uma forma para materializar nossos sentimentos, que são inúmeros. Se vamos deixá-los, após materializados, guardados em um baú, ou publicar como uma arte da vida, já é uma outra decisão. O primeiro passo é dar vida às ideias mesmo. Termino este texto com uma citação de Stephen King:
Escrever é água da vida. A água é de graça. Então beba!
Sueli Lopes é autora, escritora, professora, colunista e antologista. É Dra h. c. em Literatura e CEO do Grupo Internacional de Escritores Vozes da Diáspora (Londres), além de ser Acadêmica Benemérida da AILB (Nova Iorque) e da FEBACLA (Brasil), onde também é Chanceler da Embaixada cultural da Paz.