Enquanto caminhava de volta para casa, ao final do dia, de Hampstead a Criclewood, no norte de Londres, eu obervava os detalhes: era 31 de outubro de 2024, e o outono se mostrava deslumbrante. Misturado a ele, as coloridas abóboras, em diversos tons alaranjados. Como era iníco da noite, a maioria com velas acesas por dentro. Crianças fantasiadas distribuindo doces. Uma celebração do Halloween, muito típica no Reino Unido.Tudo muito místico.
Como a literatura, misturada à História sempre me vêm a memória, aquelas luminárias, por alguma razão, me lembraram as fogueiras do passado e seus “rituais de justiça”.
Naquele momento, lembrei-me de minha visita a Massachessts, um lindo lugar dos Estados Unidos, mas também marcado por atrocidades. Tanta história contada ali em Boston, Hudson, e nas diversas pequenas cidades.
Decidi fazer este artigo, que tem como propósito abordar “a caça às bruxas” e desmistificar um termo que serviu de pretexto conveniente para que muitas mulheres fossem assassinadas, num passado vergonhoso e sombrio. Ainda, mostrar como a literatura, com sua função social, registrou, de forma brilhante, tais fatos.
Como é constrangedor saber que ao longo da história, há um número assustador de mulheres que foram perseguidas, torturadas e assassinadas sob a acusação de serem bruxas. Este capítulo sinistro da humanidade, que se estendeu principalmente entre os séculos XV e XVIII, reflete não apenas o medo irracional e a superstição, mas também a maneira como a sociedade patriarcal encontrou um meio conveniente de suprimir mulheres que eram vistas como uma ameaça à ordem estabelecida. Essas mulheres, que em muitos casos eram curandeiras, parteiras, ou simplesmente alguém com opinião própria, foram demonizadas e silenciadas por desafiar as normas sociais.
A caça às bruxas foi, em grande medida, uma forma de controle social. Em uma época em que a ignorância científica predominava e o poder da Igreja era absoluto, o desconhecido era frequentemente interpretado como maligno. Assim, mulheres que detinham algum tipo de conhecimento, fosse sobre ervas medicinais ou tradições populares , eram frequentemente vistas com suspeita. A inteligência e o saber, atributos que deveriam ser valorizados, tornavam-se perigosos quando associados às fêmeas. Afinal, uma mulher que pensava por si mesma, que não se conformava ao papel submisso esperado, era considerada uma ameaça ao status quo.
Além disso, a acusação de bruxaria muitas vezes tinha menos a ver com qualquer comportamento real e mais com o poder e a influência social. As mulheres acusadas de bruxaria eram frequentemente aquelas que, de alguma forma, contrariavam as autoridades locais, fossem elas religiosas ou civis. Muitas eram viúvas, ou mulheres que viviam sozinhas e que, por não terem a proteção de um homem, eram vistas como alvos fáceis. Outras eram simplesmente uma figura feminina que despertavam a inveja ou o ressentimento de seus vizinhos. Nesses casos, a acusação de bruxaria era um pretexto conveniente para eliminar uma rival ou para se apropriar de suas propriedades.
A ideia de bruxaria também serviu como um meio de punir a sexualidade feminina. As mulheres que não se conformavam aos padrões de pureza sexual impostos pela sociedade patriarcal (sejam aquelas que tiveram filhos fora do casamento, que eram sexualmente ativas fora das convenções ou que eram simplesmente consideradas "tentadoras") eram frequentemente alvo de acusações. A sexualidade feminina, vista como perigosa e descontrolada, era demonizada e associada ao maligno, perpetuando a ideia de que essas fêmeas estavam em conluio com o demônio.
É fundamental desmistificar o conceito de bruxaria que foi imposto a tantas mulheres. O que foi convenientemente chamado de "bruxaria" era, na verdade, uma forma de rotular e eliminá-las por não se encaixarem nos estreitos papéis sociais designados a elas. A imagem da bruxa, com suas conotações de maldade e perigo, foi uma construção criada para justificar a violência e a repressão contra o sexo feminino. Essas mulheres não eram bruxas, mas sim vítimas de uma sociedade que temia o que não entendia e que punia aqueles que ousavam ser diferentes.
O movimento da caça às bruxas foi uma expressão do medo coletivo, mas também uma ferramenta de controle político e social. Ao eliminar mulheres que tinham conhecimento, poder ou simplesmente uma voz, a sociedade patriarcal podia reforçar sua dominação. A bruxaria, assim, tornou-se um rótulo conveniente para qualquer uma que ousasse ser mais do que a sociedade permitia.
Ao refletirmos sobre essas histórias, é importante reconhecer a coragem dessas despreendidas, muitas das quais enfrentaram tortura e morte sem jamais confessar crimes que não cometeram. Elas foram perseguidas não por serem bruxas, mas por serem mulheres que, de uma forma ou de outra, se recusaram a se submeter a uma ordem injusta. Essas histórias também nos lembram de como o medo e a ignorância podem levar a atos de crueldade indescritíveis.
A literatura, com sua função social, por sua vez, registra, em diversos livros, abordagens a respeito das mulheres acusadas de bruxaria em Salém (Massachusetts) durante os famosos julgamentos de 1692, por exemplo. Esses julgamentos são de fato eventos históricos muito explorados pela literatura e pelo cinema, tanto de maneira histórica quanto através de adaptações fictícias. Aqui estão alguns exemplos notáveis de livros:
As Bruxas de Salém (The Crucible), de Arthur Miller (1953)
Esta peça de teatro é uma das obras mais famosas sobre os julgamentos de bruxas de Salém. Arthur Miller escreveu The Crucible como uma alegoria sobre o macarthismo nos Estados Unidos, quando muitas pessoas foram acusadas de serem comunistas sem provas, da mesma forma que as mulheres de Salém foram acusadas de bruxaria. A peça é uma reinterpretação dramática dos eventos reais e enfatiza o perigo do fanatismo e das perseguições em massa.
As Bruxas: Salem, 1692, de Stacy Schiff (2015)
Este é um livro de não-ficção que explora profundamente o contexto histórico e os eventos que culminaram nos julgamentos de bruxas de Salém. Stacy Schiff, uma escritora premiada, apresenta uma análise detalhada da paranoia coletiva que tomou conta da cidade e do impacto disso sobre as mulheres acusadas de bruxaria.
A Filha do Herege, de Kathleen Kent (2008)
Este romance histórico conta a história de Martha Carrier, uma das mulheres acusadas de bruxaria em Salém. Escrito pela descendente de Martha, o livro oferece uma perspectiva íntima sobre os horrores vividos pelas mulheres acusadas e seus familiares.
Eu, Tituba: Bruxa Negra de Salém – Maryse condé (2017)
Este romance histórico apresenta uma versão ficcional da vida de Tituba, uma das primeiras mulheres a serem acusadas de bruxaria em Salém. Tituba era uma escrava, e o livro explora as questões de raça, gênero e poder que estiveram presentes durante os julgamentos. Um livro que, de forma comovente e humanizada, reimagina a história de Tituba, uma escravizada acusada de bruxaria no julgamento de Salém em 1692. A autora dá voz a Tituba, explorando questões de racismo, misoginia e resistência feminina.
A voz de Tituba reflete sobre sua posição marginalizada na sociedade. Como uma mulher negra e escravizada, ela é constantemente silenciada e desumanizada. Há uma citação fortíssima, capaz de enfatizar o triplo peso de suas opressões (de gênero, raça e classe) e o esforço necessário para que sua voz tenha valor. Maryse Condé utiliza as palavras de forma extraordinária para destacar a resistência e a luta de Tituba pela identidade e pela visibilidade, evocando questões que ainda ressoam na luta por igualdade:
Eu sou uma mulher, eu sou negra, e eu sou escrava. É preciso ser todas essas coisas para ser ouvida?
Tituba expressa a importância da autoafirmação e da luta ativa pela liberdade. Tendo sido tirada de sua terra natal e submetida à escravidão, Ela começa a entender que a verdadeira liberdade deve ser conquistada, mesmo que o preço seja alto. Tituba se transforma, deixa de ser vítima e torna-se uma mulher reivindicadora de sua autonomia, capaz de enfrentar as injustiças do sistema colonial e patriarcal:
Aprendi que a liberdade não é algo que nos é dado. A liberdade é algo que a gente toma.
Tituba reflete sobre o papel que ela acaba assumindo como uma figura de resistência. Sua presença e sua história perturbam a sociedade puritana de Salém, especialmente os brancos, que veem nela uma ameaça à ordem estabelecida. Condé retrata Tituba como uma personagem que desafia as normas sociais e questiona as estruturas de poder. A seguir, uma citação que destaca o impacto que Tituba tem como mulher negra que se recusa a ser oprimida, simbolizando o desafio ao racismo e ao patriarcado.
Eu sou um espírito que perturba e desafia, que perturba os brancos e que desafia a ordem."
Notamos bem, pelas citações acima, que os temas centrais da obra são a resistência à opressão, a busca pela liberdade e o papel de Tituba como uma voz de contestação em um mundo que tenta silenciá-la.
Tais obras, sejam elas de ficção ou baseadas em fatos históricos, proporcionam uma visão abrangente das acusações de bruxaria em Salém e da atmosfera de medo, misoginia e fanatismo religioso que permeava o período.
Nosso tributo a essas grandes mulheres, que nunca foram bruxas, mas que nos deixaram um grande legado. Afinal, Ao longo da história, a opressão contra as mulheres assumiu formas que gritam em diferentes períodos, de maneiras violentamente similares. A literatura sempre nos leva a “viajar” pelas épocas e pelos fatos históricos, muitas vezes, da forma mais brilhante e fictícia possível.
Como é o caso de O Conto da Aia (2017), no qual Margaret Atwood revive a dor dessa repressão, transportando-nos para a fictícia República de Gilead, onde mulheres são subjugadas e redefinidas por um Estado que as priva de sua identidade. Nessa distopia, mulheres como Offred (nome que nem sequer é o seu verdadeiro, mas um sinal de posse) perdem o direito de falar, de ler, de decidir por seus próprios corpos. Em Salém e em Gilead, o ato de suprimir a mulher não é uma coincidência; é um meio de perpetuar um sistema que quer suas vozes enterradas, seu espírito subjugado.
Atwood nos relembra que, ainda que o contexto mude, o fio cortante da opressão se mantém afiado. E nos expressa de forma tão linda em O Conto da Aia:
Não me diga que era diferente. Eu sei que não era. E as mulheres sabiam que estavam sob ameaça, mesmo que não fosse falado. Elas sentiam isso, como o fio de uma lâmina contra a pele.
Essa citação captura a intensidade e a constância de uma ameaça que paira, silenciosa mas presente, sobre as mulheres. Assim como as mulheres de Salém sentiam a proximidade de uma violência iminente, as mulheres de Gilead vivem sob uma lâmina invisível que raspa contra suas liberdades a cada instante. Essa ameaça invisível, quase intangível, é o peso de uma sociedade que dita o que a mulher deve ser, não o que ela deseja ser.
Ao conectar o passado real das perseguições de bruxas com o futuro imaginado de O Conto da Aia, entendemos que a luta pela liberdade feminina, por poder expressar sua voz e sua essência, é um combate que transcende o tempo e os contextos. A história de Salém não é apenas um marco distante; ela é um alerta, um testemunho doloroso do que ocorre quando se teme o poder das mulheres, quando se tenta sufocar sua autonomia.
E assim, essas narrativas, reais e ficcionais, nos lembram da urgência de defender a voz feminina. Voz essa que, como a das bruxas acusadas ou das mulheres de Gilead, ainda hoje se ergue, lutando por seu direito de ser ouvida, de existir plenamente e de escolher seu próprio caminho.
Bibliografia:
Amaral da silva, B. De deusas a bruxas: um estudo introdutório sobre a relação (conturbada) entre mulheres e religião ao longo da história. Curitiba: Brazil Publishing, 2019.
Atwood, Margaret. O Conto da Aia. Tradução de Ana Deiró. São Paulo: Rocco, 2017.
Condé, Maryse. Eu, Tituba: Bruxa Negra de Salém. Tradução de Edite Tobias. Rio de Janeiro: Record, 2017.
HOOKS, Bell. Feminist Theory: From Margin to Center. Boston: South End Press, 1984.
HOOKS, Bell. Ain`t I a woman? Black woman and feminism. London: Pluto Press, 1982.
Kent, Kathleen. A Filha do Herege. Tradução de Márcio El-Jaick. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2008.
Miller, Arthur. As Bruxas de Salém. Tradução de Millôr Fernandes. São Paulo: Editora José Olympio, 2007.
Santos, Carina Faustino. A Escrita feminina e a guerra colonial. Lisboa: Vega, 2003
Schiff, Stacy. As Bruxas: Salem, 1692. Tradução de Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2016.
Sueli Lopes é professora de línga portuguesa, autora e escritora, com dez obras publicadas (duas em inglês); além da participação em doze coletâneas. É colunista internacional. Drª h. c. Em Literatura, graduada em Letras na UFG e pós-graduada em literatura na Universidade de Salamanca. Benemérita na AILB (Academia Internacional de Literatura Brasileira ) e Febacla (Federação Brasileira das Ciências, Letras e Artes, onde também recebeu a condecoração de Chanceler da Embaixada da Paz entre Brasil e Inglaterra.

