O PARAÍSO DOS ESCRITORES, por Drª Sueli Lopes



Esta crônica refere-se a um lugar, mas não só. É bem verdade que a escrita  nasce dentro da gente, como uma semente. De igual modo, muitas obras nasceram em locais nada apropriados. Em prisões, como é o caso de algumas obras de Graciliano Ramos (27/10/1892 – 20/03/1953) ou de Dostoievski (11/11/1821- 09/02/1881); em lavanderias, como confessa Setephen King na obra Sobre a Escrita (2015). 

    Talvez isso traga a sugestão de que lugares também nos encorajam, que eles impulsionam algumas de nossas ideias. Mas, penso eu, não apenas aqueles de sofrimento ou dor. Há espaços físicos cheios de histórias e mistérios, com um traço de diversidade literária, um atmosfera de criatividade muito presentes. Em hipótese alguma quero sugerir que dependemos deles para escrever, mas não nego que são mágicos. 

    Um deles, inclusive, traz uma linda placa que o denomina “O Paraíso dos “Escritores.”. É o pub The Spaniards Inn, situado no alto de Hamsptead Heath, em Londres. Além de ser um dos locais por onde faço minhas caminhadas matutinas, é também onde gosto de tomar meu café preto, acompanhado de waffle com frutas vermelhas e creme.  

    Devo confessar que lá também gosto de escrever. O jardim é encantador, tem um túnel de trepadeiras entre as mesas, “vigiados”  por dois seres bem míticos formados em duas estátuas. Para completar o charme da atmosfera literária, há dois bancos bem convidativos: um supostamente sendo o local de inspiração de Charles Dickens, e o outro, de John Keats, frequentadores do Pub. 

    Por dentro, uma madeira maciça, escura, se constrata com as paredes brancas. Ao pé da escada, ao subir para o primeiro andar, está a linda placa “O Paraíso dos Escritores.”. Detalhe, você pode escolher ficar na Sala Charles Dickens ou na sala John Keats. Nesta, inclusive, há uma mesa onde supostamente ele se assentava. Ao fundo, suas obras e a pena que ele usou para escrever The Ode of Nightingale, na primavera de 1819. 

    Os cinco sentidos se aguçam de uma forma tão intensa: o cheiro delicioso do café, das plantas, o vento que bate, ao andarmos pelo jardim, a visão do pub que contrasta com o céu londrino, ás vezes bem cinza, às vezes azul. O barulho da música, dos carros que passam devagar, se misturam com as citações dos escritores que estão em alguma parte, querendo crescer em nossa memória. Junto a eles, uma espécie de memória ancestral invade a gente que fica mesmo em busca da alma daquele lindo, histórico e mítico lugar. 

    De vez em quando, levo o grupo de Escritores Vozes da Diáspora, do qual sou a CEO, para um happy hour lá. Um deles, foi para celebrar o aniversário de Charles Dickens, no dia 07 de fevereiro de 2024, quando também fizemos um seminário sobre sua obra, Grandes Esperanças. Em outra ocasião, ficamos na Sala Keats, com a presença do Cônsul-Geral do Brasil em Londres, o Embaixador João Alfredo dos Anjos Júnior. Foi uma noite bastante literária. 

    Isso mesmo, no coração de Hampstead, envolto em brumas de história e lendas, ergue-se o Spaniards Inn, um pub que parece sussurrar ao ouvido de quem o visita. As suas paredes de madeira rangem histórias do passado, e o vento que sopra por entre as janelas carrega o eco de vozes há muito caladas. Dizem que sua origem remonta ao século XVI, tempo em que Londres ainda aprendia a ser a metrópole que encantaria poetas e vagabundos. 

    E como todo pub de alma antiga, o Spaniards está impregnado de mistério. São tantas as versões de sua história que a verdade se dissolve entre os goles de cerveja. Conta-se, por exemplo, que o nome vem de dois espanhóis briguentos, antigos donos do estabelecimento, que acabaram mortos em um duelo fatal. Outra versão mais diplomática sugere que o nome homenageia o Embaixador Espanhol de James II. Qual é a real? Talvez nenhuma, talvez um pouco de ambas, mas quem realmente se importa quando se está sentado ali, cercado pela memória de tantos que passaram e brindaram antes de nós? 

    E então há Dick Turpin, o infame ladrão de estradas, que, segundo dizem, usava o pub como refúgio e mantinha seu cavalo na estrebaria anexa. Há algo de poético em imaginar esse fora-da-lei bebendo uma última caneca antes de desaparecer na noite. Mas o Spaniards não se limitou a acolher criminosos — também desempenhou papel crucial nos tumultuados Gordon Riots, de 1780. Durante aqueles dias de fúria, os revoltosos partiram do centro de Londres para incendiar a Kenwood House, lar do Conde de Mansfield, acusado de simpatias católicas. O que os impediu? Nada mais do que um plano engenhoso: o taberneiro do Spaniards, junto com um morador da casa do Conde, embebedou os revoltosos até que soldados chegassem para dispersá-los. Que outra taverna pode se gabar de ter salvo uma casa nobre com copos transbordantes? 

    Não é de se admirar que o Spaniards Inn tenha entrado para a literatura. Dickens o menciona em Pickwick Papers (1836), quando a Sra. Bardell e seus amigos fazem dali sua parada obrigatória para um chá. Bram Stoker, em Drácula (1897), leva Van Helsing a jantar ali antes de partir em perseguição ao vampiro. Mas esses são apenas dois dos muitos escritores e artistas que se deixaram enredar pela atmosfera do lugar. Keats, Shelley (04/08/1892- 08/07/1822), Byron (22/01/1788 – 19/04/1824), Hogarth (10/11/1697 – 26/10/1764) e Constable (11/06/1776 – 31/03/1837), todos eles cruzaram sua soleira, buscando inspiração, refúgio ou apenas um brinde à efemeridade da vida. 

    O Spaniards Inn não é apenas um pub. É um personagem, um velho contador de histórias que viu de tudo — duelos, revoltas, ladrões, poetas apaixonados e caçadores de vampiros. Seu encanto persiste, imutável, como se cada visitante que por ali passa deixasse um fragmento de sua própria história impregnado nas tábuas do chão. E, quem sabe, ao erguer um copo ali, em meio ao burburinho do presente, você escute, ao fundo, o murmúrio dos fantasmas do passado brindando junto com você. 

Sueli Lopes é autora, escritora de obras solo em português e inglês, cronista, antologista e colunista internacional. É CEO do Grupo Internacional de Escritores Vozes da Diáspora (Londres), Drª em Literatura e Chanceler da Embaixada Cultural da Paz em Londres pela Febacla. 

 

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