VIRGINIA WOOLF, UM QUARTO TODO SEU NUM MUNDO DO NOSSO, por Dra Sueli Lopes


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“As mulheres não podem pintar, não podem escrever” — assim vociferava Charles Tansley, espelho fiel de seu tempo, ao se aproximar de Lily Briscoe, que ali estava, pincel em punho, teimando em dar cor ao indizível. Seu olhar, sombrio e retorcido, pairava sobre ela como a sombra de séculos. “Cinco pênis a onça”, dizia ele, revelando, com certo orgulho miserável, a herança das ideias herdadas e da pobreza aceita. (WOOLF, Ao Farol, 1927) 

Virginia Woolf, nascida Adeline Virginia Stephen em 1882, cresceu num lar onde os livros eram os verdadeiros deuses do tempo. Filha do influente editor Leslie Stephen, pôde frequentar a biblioteca paterna como poucos meninos de sua idade — e menos ainda meninas. Lá, entre volumes encadernados e o silêncio da página, germinou sua sensibilidade literária. Mas não sem custos: a morte da mãe, em 1895, marca o início de sucessivos colapsos nervosos; mais tarde, o falecimento do pai em 1904, seguido por novas crises, que continuaram mesmo após seu casamento com Leonard Woolf. 

Entre o trauma e a lucidez, Virginia teceu uma das obras mais pungentes da literatura inglesa. “O quarto de Jacob” (1922), “Mrs. Dalloway” (1925), “Ao Farol” (1927), “Orlando” (1928) e “As Ondas” (1931) são não apenas romances — são janelas abertas sobre a alma da mulher silenciada, oprimida e, ainda assim, resiliente. 

Como escreve Herbert Marder (2011), Woolf nunca foi alheia ao mundo fora de seus círculos abastados em Kensington e no Bloomsbury Group. “Extremamente pacifista”, ela abominava símbolos do poder violento — como a Torre de Londres — e questionava como os pequenos gestos do cotidiano degeneravam em grandes atrocidades (MARDER, 2011, p. 368). Em uma de suas palestras mais potentes, “The Leaning Tower”, reflete sobre a fragilidade ideológica da juventude britânica, armada de palavras, mas desarmada diante do mundo. 

Woolf ousava pensar, como em Três Guinéus (1938), que o patriarcado — esse regime secular — moldava não apenas as universidades e as profissões, mas também o ímpeto belicoso que levava os homens à guerra. “Eu estou nas ruas. Eu pertenço à multidão”, declarou, alinhando-se ao grito coletivo contra as forças opressoras de sua época (MARDER, 2011, p. 72). 

Ela propunha, poeticamente, uma espécie de tríplice alquimia para a paz: uma doação simbólica de três guinéus — à educação, ao trabalho e ao lar. Como em um ritual de transfiguração, via na mulher uma possível agente da paz, não por essência, mas por condição histórica: educadas para a obediência, para o cuidado, para o silêncio, as mulheres carregavam consigo uma espécie de resistência interior ao conflito, que precisava apenas de liberdade para se expressar. 

Mas Virginia não era ingênua. Sabia que esse ideal também era controverso. A construção da mulher pacifista, segundo ela, deveria ser combatida pela raiz: “a educação que a torna assim deve ser transformada”. E, para isso, não bastava o debate público — era necessário intervir no invisível, no íntimo, no cotidiano. 

Seu casamento com Leonard Woolf, com quem fundou a Hogarth Press em 1917, foi, ao que tudo indica, um refúgio criativo. Ela teve, literalmente, “um quarto todo seu” — metáfora que se tornaria seu mais célebre manifesto feminista. Nele, não apenas escreveu, mas também imprimiu, publicou e leu mulheres que, como ela, queriam romper com o silêncio. 

“Como mulher, eu não tenho país. Como mulher, eu não quero ter um país. Como mulher, meu país é o mundo inteiro” (WOOLF apud MARDER, 2011, p. 370). 

Antes de tudo isso, já havia em Virginia a inquietude da menina que vasculhava a biblioteca do pai em busca de vozes femininas — poetas, filósofas, historiadoras. Encontrava o vazio. O cânone, como um espelho opaco, não lhe devolvia reflexo. Era ali, ainda adolescente, que Virginia traçava sua missão: criar uma linhagem estética para as mulheres, um passado onde pudesse enraizar seu presente (PINHO, 2015, p. 132). 

Em 1929, ela publica o ensaio “Mulheres e Ficção” na revista Forum, de Nova York — um texto de aparente simplicidade, mas que continha o germe de sua obra mais emblemática: Um Teto Todo Seu. A partir das perguntas centrais — por que as mulheres não escreviam antes do século XVIII? por que escrevem romances e não épicos? —, Woolf mergulha no labirinto da história feminina. O que encontra? Silêncio. 

“De nossas mães, de nossas avós, de nossas bisavós, o que resta? Nada além de uma tradição. Uma era linda; outra, ruiva; uma terceira foi beijada pela rainha” (WOOLF, 2019, Loc. 62). 

É por isso que a escritora propõe iniciar sua genealogia não pela exceção, mas pela regra: pela mulher comum. Porque só conhecendo o chão de onde pisa é que a mulher excepcional poderá compreender sua altitude. 

A conclusão é límpida e radical: “Uma mulher precisa de dinheiro e de um teto todo seu se quiser escrever ficção” (WOOLF, 2014, Loc. 57). A falta de tempo, de privacidade e de reconhecimento era tão danosa quanto a ausência de caneta e papel. 

Woolf observa, ainda, que as poucas que escreveram — como Jane Austen ou as irmãs Brontë — o fizeram em condições precárias, interrompidas, quase escondidas. E, ainda assim, deixaram rastros. A arte feminina, segundo ela, carrega uma intensidade inédita: “ressente-se do tratamento imposto ao seu gênero e defende seus direitos” — o que lhe dá uma força ausente na escrita masculina (WOOLF, 2019, Loc. 105). 

Esse traço está em “Ao Farol”, onde Lily Briscoe encarna o dilema da mulher-artista. Ao desafiar Charles Tansley, ao continuar pintando mesmo diante da desaprovação, Lily afirma sua existência não apenas como criadora, mas como resistência. Sua arte não é apenas expressão pessoal: é um grito coletivo, é uma linha que costura o invisível. 

“Nada resta do dia de uma mulher. Tudo o que ela cozinhou foi comido; os filhos, criados, partiram. A que se apegar, então, a romancista?” (WOOLF, 2019, Loc. 155) 

Nas páginas finais de Ao Farol, Lily traça, enfim, a linha central de seu quadro — não como resolução formal, mas como uma oferenda. A figura de Mrs. Ramsay, ausente e onipresente, torna-se o eixo da história, o farol que guia todos à sua volta. 

“Ela era a linha que une as cores de seu quadro, que segura a forma [...] o fantasma à janela” (PINHO, 2015, p. 84). 

Assim, Lily Briscoe, ao pintar, escreve. Escreve com pincéis aquilo que o mundo não permitia às mulheres escreverem com palavras. Sua pintura é um testemunho, um gesto de cura, uma reconciliação entre o mundo feminino e a arte. 

E talvez, no fim, seja isso que Woolf mais queria: que a mulher, enfim, pudesse ser. Não musa, não sombra, não reflexo — mas autora, de si, do tempo, da memória. 

Nos tempos evocados por Virginia Woolf — da Era Vitoriana às reverberações contemporâneas — o fantasma elegante e silencioso do “anjo do lar” ainda ronda a casa, ronda o coração, ronda o imaginário social. É um espectro de saias longas e sorrisos contidos, que paira sobre as almofadas da sala e o vapor das panelas. Em Três Guinéus (2019b), como já mencionado, Woolf presta reverência ao labor das mulheres operárias, que com mãos calejadas enfrentavam a brutalidade das fábricas. Mas ela não se esquece — e como poderia? — daquelas mulheres da classe média e alta, as que jamais tocaram em um torno mecânico, mas que giravam a vida em torno dos berços e dos fogões. Mulheres que, privadas de educação formal, eram confinadas ao silêncio doméstico — um silêncio que, paradoxalmente, gritava. 

Essas mulheres não eram apenas mães ou esposas; eram cuidadoras de almas, moderadoras de sentimentos alheios, estrategistas emocionais de suas famílias. Como a Sra. Ramsay, em Ao Farol (2020), que sabia, intuitivamente, como aplacar as sombras do marido, suavizar as dores dos filhos, ainda que para isso precisasse engolir as próprias. Já o Sr. Ramsay, este jamais se curvou à exigência de modular suas palavras ou censurar suas verdades. Ele podia ser cru, direto, cortante — porque o mundo permitia que ele assim fosse. “Nunca alterava uma palavra desagradável para se adequar ao prazer ou à convivência de qualquer ser mortal...” (WOOLF, 2020, p. 6) — e nisso, talvez, estivesse a marca de sua liberdade. 

O lar parecia ser o reino da mulher, mas quem ditava as leis desse reino era, invariavelmente, o homem — com sua liberdade de ir, vir e existir sem se justificar. 

Woolf, em Mulheres e Ficção, oferece um novo lugar de fala à mulher: ela não precisa mais apenas encenar papéis privados; pode tornar-se a “mosca-varejeira do Estado”, perturbando, provocando, questionando estruturas em um plano mais amplo, onde se discutem não só emoções, mas também conflitos de classe, raça e poder (WOOLF, 2019, Loc. 158–171, segundo o Kindle). 

Entre poesia e ficção, Virginia clama por “tempo e livros e um pequeno espaço na casa” — um espaço onde a mulher possa se recolher, não como um enfeite da casa, mas como uma criadora de mundos. Afinal, como ela tão lindamente escreve, “ficção não cai como uma pedra no chão, como na ciência; ficção é como uma teia de aranha, presa por muito pouco, mas ainda assim presa à vida pelos quatro cantos...” (WOOLF, 2014). Um fio quase invisível, mas que vibra ao menor sopro da realidade. 

Foi assim que nasceu o ensaio Um Teto Todo Seu, apresentado pela primeira vez em Newnham College, em 1928 — quase como uma semente que germinaria, com o tempo, no campo fértil da literatura feminista. O texto Mulheres e Ficção pode, portanto, ser lido sob duas luzes: como uma reflexão sobre as mulheres que escrevem, e como uma crítica sobre a maneira como elas são escritas. No centro, está o desejo ardente de representação justa — a necessidade de que a mulher seja autora de sua própria narrativa, e não apenas personagem de um roteiro alheio. 

Ter “um quarto todo seu” é mais do que uma metáfora: é um imperativo social. Woolf sabia — como poucas — que a ficção escrita por mulheres até o século XVIII estava embebida do cotidiano doméstico. Era o que lhes cabia escrever, era o que lhes restava narrar. Mas isso, claro, não diminui sua potência. 

E ao cruzarmos o oceano, podemos perguntar: o que diria Virginia Woolf ao ler os cadernos amarelados de Carolina Maria de Jesus? A mulher negra das favelas paulistanas, que fez do lixo sua biblioteca e do diário sua arma contra a exclusão? Diria, talvez, que o quarto todo seu não precisava ter paredes de tijolo — bastava que tivesse silêncio, e tempo, e papel. Carolina não estava errada em escrever sobre si — estava, aliás, profundamente certa. Pois o pessoal, como já nos ensinou o feminismo, também é político. 

Woolf, com seu humanismo crítico, antecipa o que hoje tentamos ainda consolidar: a necessidade de um feminismo plural, que inclua as vozes historicamente caladas. Que não se limite às dores da mulher inglesa branca de classe média, mas que escute também a mulher trans, a mulher indígena, a mulher negra, a mulher periférica. Mulheres de muitos quartos, de muitas vozes, de muitas dores. 

Se, como escreveu Woolf, “a ficção pode conter mais verdades do que o fato” (WOOLF, 2014, Loc. 71), é justamente porque ela nos permite dizer o indizível — construir sentidos onde antes havia silêncio. A literatura, nesse sentido, não é apenas espelho: é também farol, bússola e caminho. 

Por isso, mais do que nunca, é preciso ler o que escrevem as mulheres. E é preciso perguntar: de onde elas escrevem? Com que recursos? Com quais liberdades? A resposta a essas perguntas não apenas ilumina a literatura feminina — ela ilumina a própria estrutura da sociedade. 

Virginia Woolf abriu a porta de um quarto que era, até então, trancado a sete chaves. Hoje, cabe a nós garantir que ele continue aberto — e que dele saiam vozes diversas, complexas e profundamente humanas. 

Com a porta entreaberta por Virginia, outras mulheres passaram — às vezes sussurrando, às vezes rugindo. Algumas se debruçaram na soleira, outras arrombaram o batente. Mas todas, à sua maneira, exigiram não apenas um quarto, mas o direito de habitar plenamente o mundo. Porque, como já anunciava Woolf, a criação literária exige mais do que talento: exige chão, exige tempo, exige liberdade. 

A americana Toni Morrison, por exemplo, cruzou os limites do quarto para explorar as ruínas da memória coletiva afro-americana. Seus romances — como Amada ou O olho mais azul — não são apenas ficções: são rituais de cura, de escavação, de denúncia. Morrison escrevia para que os fantasmas das mulheres negras não permanecessem enterrados sob a história oficial. Ela também escreveu de um lugar que não era totalmente dela, mas que ela tomou de volta à força, palavra por palavra. Como Carolina Maria de Jesus, Morrison falava de si e dos seus, mas com um sopro de universalidade que transformava a dor particular em clamor social. 

No Brasil, Conceição Evaristo cunhou uma expressão potente: escrevivência. Um modo de escrever que nasce da vida, do corpo, da experiência vivida — não como algo menor, mas como matéria-prima fundamental da arte. Para Evaristo, a escrita é um gesto de sobrevivência e, ao mesmo tempo, de rebeldia. Ela reverte o olhar: da mulher-objeto para a mulher-sujeito. Da mulher silenciada para a mulher narradora. Ela nos lembra que cada linha escrita por uma mulher negra é também um golpe no sistema que a quis invisível. 

E quando olhamos para as escritoras indígenas — como Eliane Potiguara ou Julie Dorrico — percebemos ainda outra forma de quarto, outro modo de habitar o mundo: uma literatura que carrega não apenas a luta de gênero, mas a cosmovisão de um povo, uma floresta, um tempo ancestral. Aqui, o “teto todo seu” talvez seja a oca, o território, a oralidade que desafia a linearidade da escrita ocidental. 

É nesse emaranhado de vozes que percebemos: a proposta de Woolf se amplia, se expande, se descentraliza. Seu quarto se transforma em muitos — há quem escreva no vagão do trem, entre as tarefas do dia, à luz de velas ou sob postes da rua. Há quem escreva sem porta, sem silêncio, mas com urgência. Porque a escrita, para muitas, não é só um luxo intelectual: é um ato de resistência. 

Mas mesmo diante dessas conquistas, o desafio continua. Ainda vivemos em um mundo onde mulheres precisam justificar seu lugar na literatura, onde a autoria feminina é subestimada, rotulada, apagada. Onde prêmios, críticas e publicações ainda carregam o viés de uma cultura historicamente patriarcal e eurocentrada. Basta olhar a sub-representação de mulheres trans nos catálogos literários ou a escassa presença de autoras indígenas em espaços institucionais de prestígio. 

Por isso, mais do que nunca, é preciso transformar o “quarto todo seu” em um mundo todo nosso — onde mulheres, em suas múltiplas identidades, possam escrever sem amarras, sem censuras, sem concessões. Um mundo onde a literatura escrita por mulheres não seja rotulada como “literatura feminina”, mas simplesmente reconhecida como literatura — com toda a potência, pluralidade e complexidade que esse termo pode carregar. 

E que saibamos, como Woolf nos ensinou, que a ficção é uma teia frágil, sim — mas resistente. Que ela não se prende apenas ao fato, mas também ao desejo, ao sonho, ao delírio. E que dentro dessa teia há espaço para todas nós: as que vieram antes, as que escrevem agora, e as que ainda estão por vir. 

  Sueli Lopes é autora, escritora, colunista internacional e Criadora do Grupo Vozes da Diáspora (Londres). É Drª h. c. em Literatura e pós-graduada em Literatura Comparada pela Universidade de Slamanca- Es. É Chanceler da Embaixada Cultural da Paz em Londres pela Federação Brasileira das Ciências, Letras e Artes. 

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