Vivemos uma era em que o tempo parece correr em direção ao colapso. As mudanças climáticas, a perda de biodiversidade e a ruptura das relações humanas com o planeta indicam um modelo civilizatório esgotado. No entanto, há caminhos outros, vozes silenciadas por séculos, que nunca deixaram de apontar alternativas mais sustentáveis, coletivas e sensíveis. Os povos originários, muitas vezes tratados como "subpovos", expressão usada por Ailton Krenak, têm muito a nos ensinar. O futuro, mais do que nunca, depende do quanto conseguiremos escutar essas vozes ancestrais.
Krenak, ativista indígena, pensador e atual membro da Academia Brasileira de Letras, nos alerta em seu livro Para adiar o fim do mundo que os povos indígenas têm presenciado o fim de seus mundos há séculos — seja com o avanço da colonização, seja com a destruição de seus territórios. E mesmo assim, resistem. Ele nos lembra que o apocalipse que o Ocidente teme já aconteceu várias vezes para esses povos. “O mundo acaba toda vez que uma barragem se rompe e mata um rio”, diz, numa referência direta ao crime ambiental da barragem da Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. Para os povos Krenak, aquele rio era um avô. A lama tóxica não matou apenas um curso d’água: assassinou uma entidade viva, um parente.
Imagine a violência que a pequena comunidade que ainda resiste, os Krenaks, sofreu? Às margens daquele rio, considerado seus “avô” contaram histórias, enterraram seus ancestrais, a generosidade com o Rio Doce a eles era algo sagrado, pois receberam ali muita sabedoria. Os peixes que ainda sobrevivem ali já se tornaram imprórios ao consumo, a água não é mais potável. Hoje, os índios da aldeia Krenak precisam comprar comida que vem da cidade. Não podem mais pescar e nem caçar. Estão fora de seu mundo, de seus costumes, de tudo o que construíram por séculos ali. Por pura ganância desse capitalismo desacerbado.
Essa visão do mundo como uma grande teia de parentesco é um ponto central na cosmovisão indígena. Sol, lua, árvores, rios e montanhas não são recursos. São parentes, seres vivos com os quais compartilhamos a existência. Em vez de dominá-los, como propõe a lógica extrativista ocidental, os povos originários vivem em relação e reverência com eles. “A floresta não é um lugar onde se entra para explorar, é um lugar onde se entra para ouvir”, disse uma liderança amazônica no Congresso de Barcelona em 2024, onde se discutiu amplamente o papel das epistemologias indígenas na construção de futuros habitáveis.
Nesse evento, intelectuais, cientistas e lideranças originárias dialogaram com pensadores contemporâneos como Emanuele Coccia, filósofo italiano que propõe uma visão expandida da vida e da natureza. Coccia argumenta que a vida é um contínuo, e que todas as formas vivas estão interligadas por uma respiração comum. Ele afirma: “Respiramos uns aos outros. A planta que você vê agora, já esteve dentro do seu
corpo, no ar que você respirou”. Essa visão dialoga fortemente com a filosofia ancestral indígena, que nunca precisou “descobrir” a interdependência — ela sempre esteve ali, como sabedoria vivida.
É nesse sentido que Krenak critica a ideia de humanidade como algo homogêneo e universal. Para ele, essa categoria exclui as formas plurais de existir, sentindo, sonhar e viver em comunidade que sempre foram a base dos povos originários. Ao tratá-los como "subpovos", emanamos o racismo estrutural que rebaixa seus conhecimentos e experiências de mundo como folclore, ignorando sua profundidade filosófica. "Nos chamam de sub-humanos para manter um modelo onde só um tipo de gente importa", provoca Krenak, desafiando-nos a repensar o próprio conceito de humanidade.
Quando falamos em futuro, falamos em escolhas. E talvez a escolha mais urgente seja esta: aprender com quem já atravessou muitos fins de mundo, com quem sabe que resistir não é apenas sobreviver, mas manter viva a beleza da existência coletiva. O saber ancestral não é coisa do passado. Ele é uma semente que precisa ser regada agora, com escuta, com respeito, com mudança real.
A verdadeira inovação, neste século marcado por crises e colapsos, pode não vir das grandes tecnologias ou dos fóruns econômicos. Pode vir da sabedoria milenar daqueles que sempre souberam que o rio é avô, que a terra é mãe, que o tempo é espiral. E que o futuro, se houver, será ancestral.
Essa compreensão de que tudo o que vive está conectado encontra um potente espelho no pensamento do filósofo Emanuele Coccia, especialmente em sua obra A Vida das Plantas. Ele nos convida a reconfigurar radicalmente a forma como percebemos a vida no planeta, propondo que as plantas — muitas vezes invisibilizadas — são o alicerce do mundo habitável. Coccia afirma que “as plantas são a forma de vida mais radical, pois transformam a luz em mundo, o invisível em matéria, o etéreo em alimento”.
É impossível não ver o quanto essa visão dialoga com a sabedoria dos povos originários, para quem uma árvore não é um recurso, mas uma primeva. Na floresta, não há hierarquia entre os seres, há convivência e reciprocidade. Coccia escreve: “Toda vida é vegetal em sua origem: nós respiramos o que as plantas exalam. Somos, desde sempre, atravessados por elas. A vida não é uma soma de organismos isolados, mas uma fusão atmosférica.”
Essa fusão é também uma fusão espiritual. Os povos indígenas não se veem fora da Terra — são parte dela. A Mãe Terra não é uma metáfora: é mãe mesmo, com quem se fala, canta, dança e chora. E se ela sofre, todos nós sofremos. Não há como salvar a humanidade sem salvar o planeta, e não há como salvar o planeta sem escutar quem sabe conviver com ele há milênios.
O colapso ambiental que vivemos hoje é também um colapso de imaginação. Por isso, a cosmovisão indígena e a filosofia da natureza de Coccia nos oferecem não apenas
alertas, mas caminhos. Caminhos de reencontro, de reencantamento com a vida. Caminhos de cura. O futuro será possível apenas se for vivido em comunhão — com a Terra, com os rios, com os ventos, com os saberes originários.
Neste mês em que se celebra o Dia dos Povos Indígenas, em 19 de abril, é preciso ir além das homenagens pontuais. É necessário respeitar, proteger, ouvir e valorizar essas culturas todos os dias. Não como um gesto de caridade ou exotismo, mas como um dever coletivo de reverter uma história de apagamento.
Afinal, não se trata apenas de salvar o planeta — trata-se de salvar nossa própria alma, de voltar a dançar com os ritmos da terra, como numa dança tribal em que todos os corpos, todas as culturas, todos os seres — humanos ou não — compartilham o mesmo chão sagrado.
Que essa dança seja feita de respeito às diferenças, de cuidado com a vida em todas as suas formas, e de gratidão àqueles que, mesmo feridos, seguem ensinando com generosidade. Os povos indígenas não são o passado. São o que ainda pode haver de mais radicalmente futuro.
O futuro é enraizado nos saberes primevos.. E está batendo à porta, com pés descalços e olhos que viram várias vezes os seus mundos acabarem — mas ainda assim, como exemplo de resiliência, acreditam que ele pode recomeçar, dar continuidade. Ou, pelo menos, que podemos “adiar o fim do mundo.”
Os povos indígenas, tantas vezes considerados como ”marginalizados” por uma visão dominante, eurocêntrica e colonizadora, carregam em si uma sabedoria que nasce da dor, da resistência e do amor à Terra. Eles conhecem como poucos o que é ver o próprio mundo desmoronar — não uma, mas muitas vezes. Viram suas florestas serem devastadas, seus rios envenenados, suas línguas silenciadas, suas casas queimadas, seus deuses ridicularizados. Ainda assim, continuam a cantar, a curar, a plantar, a ensinar. Enquanto o Ocidente começa agora a temer o fim, os povos indígenas já aprenderam a sobreviver a diversos fins, sempre reinventando o mundo com coragem e dignidade.
Hoje, nós — habitantes das cidades, acostumados a pensar a natureza como paisagem ou recurso — nos vemos tomados pelo medo. O planeta clama, os ciclos se rompem, e o futuro nos escapa pelas mãos. Não sabemos que rumo seguir. É aqui que precisamos, humildemente, reconhecer: os povos originários têm algo essencial a nos oferecer. Eles são “gente como a gente” — mas com culturas, fés, cosmovisões que não nos diminuem, e sim nos completam. O começo dessa cura planetária está no encontro. No reconhecimento mútuo. No escutar sem pressa, sem soberba. Unir-nos a eles, não como salvadores ou estudiosos, mas como irmãos e irmãs na grande dança da vida, é talvez o gesto mais revolucionário de nosso tempo.
Porque, no fundo, o que está em jogo é algo muito maior do que nós: é a continuidade da própria Terra como mãe de todas as gentes. E para que ela continue viva, precisamos, juntos, reaprender a dançar. Num movimento originário, onde cada passo ecoa as raízes
do mundo — onde cada cultura tem seu passo, cada povo seu canto, e todos pisam o mesmo chão, com reverência, respeito e esperança.
Sueli Lopes é autora, escritora, colunista internacional e Criadora do Grupo Vozes da Diáspora (Londres). É Drª h. c. em Literatura e pós-graduada em Literatura pela Universidade de Slamanca- Es. É Chanceler da Embaixada Cultural da Paz em Londres pela Federação Brasileira das Ciências, Letras e Artes.